terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Leitura recomendada: O Estado popular de Hitler

Quando normalmente se pensa na segunda grande guerra e nas atrocidades cometidas é normal colocarmos todos os olhares em Hitler e o seu grupo restrito de capangas que a partir dos seus ministérios controlaram todas as operações militares e ultimaram os detalhes da “solução final” para o problema judaico. Alguns ainda se perguntam como terá sido possível Hitler chegar ao poder democraticamente, onde invariavelmente são discutidas as capacidades oratórias do líder nacional-socialista e o seu carisma. Em cima disto, e talvez ainda mais relevante, tínhamos a Alemanha no culminar de uma crise hiper-inflacionária e no cenário internacional a Grande Depressão não ajudava certamente. Hitler jogou bem as suas cartas e chegou ao poder vendendo esperança ao povo na forma de politicas socialistas que hoje são consideradas, pelo menos na Europa, como “direitos adquiridos” que não podem ser colocadas em causa. No entanto, mais importante do que a forma como chegou e se perpetuou no poder será perceber como é que, depois de mostrar as suas politicas e colocar a Alemanha em guerra com meio mundo, os alemães não apenas o deixaram ficar no poder como activamente o apoiaram a barbárie. E é sobre isso que nos fala este livro que vos recomendo de Gotz Aly.



Como disse anteriormente a Alemanha estava numa complicada situação financeira resultado de sucessivas crises com origem não só na primeira grande guerra como em politicas monetárias suicidas. Quando o NSDAP (National-sozialistische Deutsche Arbeiterpartei ou Partido Operário Nacional-Socialista) chega ao poder em 1933 consegue fazer o que FDR tentou mas nunca conseguiu: um “milagre keynesiano”. O Estado “fomentou” em larga escala a procura de armamento e forneceu assim o emprego que o povo procurava – este foi o aspecto visível das políticas do NSDAP que obviamente o povo estimava pois se agora podiam comer e antes não pouco lhes interessava se fabricavam balas ou bicicletas. Outras políticas seguidas, para nomear apenas algumas das mais populares, passaram pelo aumento (real) das pensões, a criação de férias para o trabalhador e um subsidio que permitisse que este pudesse de facto gozar as suas férias com a sua família algo que era uma completa novidade para os alemães dos anos 30.

Por outro lado o Estado acumulava, dia após dia, enormes défices (tal como hoje) para sustentar estas fábricas. Em 1936 as contas públicas alemãs encontravam-se numa situação deplorável devido às políticas seguidas, era evidente para os responsáveis que se nada fosse feito brevemente o colapso era inevitável. Começa-se então a “sacar uns cobres” aos judeus, nada (demasiado) escandaloso começando-se por coisas simples. Por exemplo, apesar dos donos de cães terem que pagar uma licença municipal para terem o animal os cegos estavam isentos por necessitarem de um cão-guia. Uma das medidas tomadas foi exactamente acabar com esta isenção para os judeus. Muitas outras “pequenas” medidas (impostos) deste género foram tomadas sem que as massas estivessem preocupadas, bem pelo contrário. Para perceber como é que isto foi aceite pela grande maioria basta aplicar estas medidas aos dias de hoje e substituir “judeus” por “ricos” ou “capitalistas” para compreender que não só estas medidas não são contestadas como são, genericamente, aplaudidas.

Por volta de 1937-38 estas pequenas receitas tinham apenas conseguido abrandar o descalabro financeiro e era urgente a necessidade de fazer algo mais. O governo de Hitler avança então com medidas para expropriar alguns bens dos judeus como jóias, acções, divisas estrangeiras e outros bens. Pouco depois seriam mesmo expropriadas as empresas de que eles eram donos. Os legítimos proprietários não eram no entanto deixados de mãos a abanar, isso seria um roubo simples que o mais ingénuo de nós perceberia pelo que é. O Estado oferecia contra-partidas sobre estes bens na forma de títulos de dívida pública (não negociáveis como é óbvio) e aos judeus era pedido que vivessem dos juros que estes rendiam. Havendo uma contra-partida financeira as pessoas menos educadas não tomam o acto pelo roubo que é mas sim por um “esforço” pelo “interesse nacional”. O Estado conseguiu assim, pelo menos, duas coisas importantes:

1) Financiar o défice descomunal através da venda forçada dos bens judeus
2) Explicar aos alemães que havia cidadãos de primeira e de segunda o que seria util para os tempos que viriam

Em 1939 começa a guerra como todos sabem e a expropriação dos bens não só acelera o passo na Alemanha como se estende aos territórios ocupados. Mesmo os que não eram judeus nestes territórios ocupados foram naturalmente saqueados sem no entanto o perceberem através de uma arma famosa: a inflação. Normalmente a primeira medida a fazer quando se invadia um país era estabelecer uma nova taxa de câmbio entre as moedas, obviamente sempre favorável ao RM mas nem só desta medida óbvia vinha a ameaça. O banco central alemão, em conjunto com o ministério, imprimia uns “vales mágicos” que podiam ser usados nos territórios ocupados como moeda e obviamente era isso mesmo que os soldados alemães faziam. Os nativos não eram assim (normalmente) saqueados pela força mas vendiam normalmente o produto do seu trabalho aos alemães que eram pagos com os tais papelinhos (qualquer semelhança com os dias de hoje, suspeito, não é mera coincidência). As fotografias presentes no livro dos comboios a abarrotar de encomendas provenientes dos territórios ocupados para as famílias dos soldados são bem elucidativa do saque. Na Alemanha, as esposas e namoradas dos soldados exibiam sedas francesas nunca antes vistas, os familiares banqueteavam-se em carnes fumadas que nunca tão facilmente tinham encontrado. Ao contrário do que os alemães estavam à espera (devido às expectativas criadas pela guerra de 1914) vivia-se melhor na Alemanha durante a guerra do que antes e não era necessário parar para pensar como eram obtidas todas estas riquezas. Obviamente para os nativos dos territórios ocupados, que viam o seu poder de compra diminuir constantemente, acontecia exactamente o inverso. Privações de comida tornaram-se normais com o tempo.

O pior, como sabemos, estava ainda para vir. A partir de 1940 a Alemanha começa a ser alvo de bombardeamentos aéreos destruindo (obviamente) vidas e propriedades. Muitos alemães vitimas dos bombardeamentos viram-se de repente sem casa. É então colocada em movimento a fase final da expropriação judia ficando com as suas casas. Mais uma vez de enorme importância financeira para as contas públicas mas não só, de grande importância social para que Hitler mantivesse o apoio popular à guerra. Os judeus receberam notificações para abandonar as suas casas e a informação que podiam levar consigo até 50Kg de bagagens que continham apenas bens pessoais (nada de dinheiro e jóias) como roupa e artigos de higiene e que se deviam preparar para abandonar o país. Quando chegavam aos comboios já nós sabemos: as malas ficavam na estação e eles eram encaminhados para os campos de concentração ou para trabalhos forçados nas fábricas e campos do Reich. Mais tarde tudo era vendido em leilões, desde as casas até aos lençóis e brinquedos das crianças que tinham sido deixados para trás ou iam nas malas que ficaram na estação. Também aqui a doutrina socialista é “interessante” ao demonstrar uma “preocupação social” – é que os leilões não eram para todos ao mesmo tempo mas sim por fases:

1) Primeiro acediam aos leilões aqueles que tinham sido afectados directamente pela guerra (vitimas de bombardeamento, soldados incapacitados, etc.)
2) A segunda fase do leilão era exclusivamente para grávidas, recém-casados e famílias numerosas.
3) Havia depois a fase final do leilão, para as sobras dos dois anteriores, onde todos os alemães podiam participar.

A receita financeira para o Estado foi, como se pode imaginar, enorme mas os grandes beneficiários foram certamente os próprios alemães que ficaram com bens por “tuta e meia” que nunca pensaram ter. Além do mais, pelo regime demonstrar aquela preocupação social com a distribuição dos bens havia a ideia generalizada que era uma “distribuição justa” – expropriados que se lixem.

Este texto já vai muito mais longo do que aquilo que eu tencionava escrever (era suposto ser um pequeno texto a recomendar o livro e não o que saiu) mas, espero que compreendam, não me contive porque este livro me tocou bastante. A maior parte das informações no livro foram retiradas pelo autor de cartas oficiais trocadas entre os oficiais militares e politicos e também da correspondência normal que os soldados enviavam às suas familias da frente de batalha. A facilidade com que se fala de coisas deste género, por pessoas que viveram o momento, faz-nos à distância ficar muito preocupados. Termino com uma citação que vem no livro, de uma cidadã alemã proferida mais de uma década após o final da guerra:

“Durante a guerra não passávamos fome, funcionava tudo! Depois é que tudo começou a piorar.” – Assim se explica a barbárie nacional-socialista.

Título: O Estado popular de Hitler – Roubo, guerra racial e nacional-socialismo
Autor: Gotz Aly
Editora: Texto Editores

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