Na sequência dos cenários deflacionistas que aqui tinha deixado há poucos dias recebi alguns e-mails pertinentes sobre as leituras que recomendei e sobre a posição que tomei, nomeadamente a parte em que eu digo dos autores “não me convencerem completamente dos seus argumentos”. Depreenderam alguns leitores, correctamente, que continuo a favorecer o final desta crise num estoiro hiper-inflacionário em oposição a uma contracção deflacionaria histórica. Ambos os cenários são válidos e como o ser humano é um ser capaz de livre arbitrio ainda há opções a tomar sobre que caminho tomará o colapso da expansão de crédito.
Primeiro que tudo convém esclarecer que esta crise é deflacionária por natureza. A sua origem é clara no crescimento exponencial de crédito (ou massa monetária) desde os anos 90. Chegados a 2007 com uma situação insustentável em que o grande publico simplesmente não conseguia absorver mais crédito dá-se uma contracção. Os devedores começam a entrar em incumprimento do pagamento das suas dívidas, os bancos retraem-se quando chega a altura de fazer novos empréstimos e aqueles que fazem aumentam o seu preço (taxa de juro / spread) reflectindo a maior percepção de risco no mercado.
Num mercado livre (ignoremos por agora que esta situação nunca teria ocorrido num mercado livre) ao dispararem as taxas de incumprimento começaria a haver uma liquidação involuntária da dívida, o crédito diminui e as massas monetárias contraem levando a uma valorização do dinheiro, ou seja, deflação.
Mas o mercado não é livre, no centro de toda a manipulação do custo do dinheiro está o banco central (a razão de estarmos hoje onde estamos) e o que Ben Bernanke quer fazer é, à medida que o crédito vai sendo destruído do sistema através da liquidação de dívida o banco central vai criando novo dinheiro para tomar o seu lugar. Em teoria isto permitiria que a massa monetária se mantivesse estável ou até crescesse um pouco e tudo continuaria normal e estável. Esta teoria, defendida não apenas por Bernanke mas por outros ilustres economistas que acham que a economia é um processo mecânico simples em que basta premir um ou dois botões para termos o efeito desejado é obviamente uma ilusão, mas isso não impede que as pessoas acreditem nela e é esse facto que me faz acreditar num estoiro hiper-inflacionário e não numa depressão deflacionária.
Fig. 1 - Crescimento das várias massas monetárias nos EUA
Podemos ver no gráfico acima que apesar de já estarmos há mais de um ano nesta crise as massas monetárias continuam a aumentar. É verdade que o seu ritmo de crescimento decresceu especialmente nos últimos meses mas isso quer apenas dizer que cresce a um ritmo mais lento e não que está a diminuir, ou seja, apesar de todas as forças de mercado estarem a tentar liquidar a dívida o Governo e o banco central estão a fazer tudo o possível para que isto não aconteça injectando mais dinheiro no sistema do que aquele que é destruído.
Porque é que têm então baixado, genericamente, os preços? Bom, isto depende de para onde estamos a olhar. O Banco de Inglaterra foi dos primeiros a imprimir mais notas para fazer frente ao colapso de crédito, o resultado foi a desvalorização da libra em mais de 30% e efectivamente neutralizou qualquer sombra de deflação (em bens de consumo) até ao momento. Estabilizou a economia? Obviamente que não, apenas um louco poderia julgar que imprimir notas serviria para estabilizar o que quer que seja mas evitou o declínio de preços e era esse o principal objectivo do banco central visto que no seu raciocínio preços a aumentar estabilizam a economia. Daqui a alguns meses irão questionar-se a si próprios porque é que a sua teoria não se aplica na realidade e então tentarão outra qualquer insanidade e pagarão o preço por isso. A economia é composta por todos os seres humanos do mundo a competirem por bens e serviços, pensar que se pode manipular a economia com dois ou três botões na impressora é pensar que a economia é composta por autómatos – de uma forma ou de outra será revelado a estes banqueiros os seus erros. Felizmente o BCE tem sido dos mais prudentes apesar de ir com a manada, vai mais devagar.
Porque é que estes resultados do banco central de Inglaterra não estão a ser reproduzidos nos EUA ? Principalmente porque a moeda dos EUA, o dólar americano (USD) é efectivamente a moeda de reserva do mundo. Enormes quantidades de empréstimos e negócios feitos fora das fronteiras dos EUA são feitos em USD e isto dá a esta moeda uma dimensão completamente diferente. A possibilidade de contracção no crédito é muito maior além de que existe uma maior quantidade de investidores dipostos a refugiarem-se em USD ao contrário de libras esterlinas reforçando o valor da moeda, também aqueles que optarem por liquidarem os seus créditos (denominados em USD) voluntariamente vão estar a favorecer a força do dólar.
De repente dá-se um fenómeno no USD, explicado por Von Mises em Theory of Money and Credit, que é uma contracção da massa monetária por via de liquidação de crédito enquanto as pessoas aumentam a sua procura de dinheiro (aumentam as suas poupanças, vendem bens para angariar dinheiro, etc.). Esta inclinação do publico não é estanque e pode mudar muito depressa conforme a percepção do valor das suas poupanças, ou seja, o estado de espírito pode mudar rapidamente de “estamos em crise é melhor poupar algum” para “os preços estão a subir tanto que eu não preciso de cadeiras mas é melhor comprar à mesma antes que o dinheiro não chegue”. Esta percepção é baseada no dinheiro disponível e no poder de compra de cada unidade monetária, as duas coisas que precisamente os bancos centrais estão a tentar inverter (aumentar o dinheiro a circular e desvalorizar cada unidade monetária).
Eu tenho uma compreensão da crise muito parecida com a de Robert Prechter nos textos que mencionei anteriormente. A razão de discordarmos dos resultados da crise é a percepção que cada um de nós tem das ideias de Bernanke e outros que andam por aí. Vejamos este discurso de Ben Bernanke em 2002:
The U.S. central bank, in cooperation with other parts of the government as needed, has sufficient policy instruments to ensure that any deflation that might occur would be both mild and brief. It is true that once the policy rate has been driven down to zero, a central bank can no longer use its traditional means of stimulating aggregate demand but it has most definitely not run out of ammunition. Deflation is always reversible under a fiat money system. The U.S. government has a technology called the a printing press that allows it to produce as many U.S. dollars as it wishes at essentially no cost. Under a paper-money system, a determined government can always generate higher spending and hence positive inflation. Of course, the U.S: government is not going to print money and distribute it willy-nilly (although as we will see later, there are practical policies that approximate this behavior). To stimulate aggregate spending when short-term interest rates have reached zero, the Fed must expand the scale of its asset purchases or, possibly, expand the menu of assets that it buys. We can take comfort that the logic of the printing press example must assert itself, and sufficient injections of money will ultimately always reverse a deflation. Unlike some central banks, and barring changes to current law, the Fed is relatively restricted in its ability to buy private securities directly. However the Fed could offer fixed-term loans to banks at low or zero interest, with a wide range of private assets (including, among others, corporate bonds, commercial paper, bank loans and mortgages) deemed eligible as collateral. The Fed can inject money into the economy in still other ways. For example, the Fed has the authority to buy foreign government debt, as well as domestic [municipal] government debt. Potentially, this class of assets offers huge scope for Fed operations, as the quantity of foreign assets eligible for purchase by the Fed is several times the stock of U.S. government debt. The government could increase spending on current goods and services or even acquire existing real or financial assets. If the Treasury issued debt to purchase private assets and the Fed then purchased an equal amount of Treasury debt with newly created money, the whole operation would be the economic equivalent of direct open-market operations in private assets.
Sobre isto Robert Pretcher teve o seguinte comentário (escrito em 2003):
Can you see why economists and financial writers of all types have panicked and embraced the idea that inflation is inevitable and deflation impossible? They have met the Wizard of Oz in person, and he is impressive!
He is also delusional. Can you imagine the laughingstock that the Federal Reserve System would become if its “assets” consisted of defaulted mortgages, bonds of bankrupt companies and municipalities, IOUs of shaky foreign governments and stock certificates of companies no longer in existence? Can you imagine the panic that would ensue to escape a monetary system with such assets as its reserves?
Todo o mérito ao autor por ter escrito isto 5 anos antes dos eventos que assistimos, mas a realidade é que de facto a Fed tem aumento significativamente o tamanho das suas reservas com todo o tipo de colateral duvidoso.... e o pânico não chegou, particularidade do USD ser moeda de reserva. Se algum pânico chegou aos chineses é um tipo de pânico gelado, que lhes congelou a acção só de pensarem nas consequências de abandonarem o USD. Não quer dizer que não o venham a fazer, é o mais provável que chegue o dia em que assumam as perdas e tentem salvar o que resta mas de momento tentam não o fazer.
A diferença entre Pretcher e eu é que ele acha que Bernanke vai ter juízo, vai ver as consequências das suas acções e vai restringir a impressão de moeda. Eu acho que ele é completamente louco... os “rebates” que Obama está neste momento a dar ao publico americano são apenas o inicio. Nada impedirá (teoricamente falando) que o Tesouro emita divida comprada directamente pela Fed e que de seguida distribua esse novo dinheiro pelos contribuintes que não resolverá nada enquanto o publico mantiver a propensão para poupar pois será possível que esse novo dinheiro não seja injectado na economia mas que seja rapidamente direccionado para poupanças ou para abater dívida existente (como a hipoteca da casa). Nesta perspectiva sairia muito mais barato enviar um cheque de $500.000 a cada contribuinte para liquidarem as suas dívidas (que iria resolver o problema dos bancos) do que estar continuamente a tentar salvar a banca comercial directamente. Claro que este tipo de medidas tem outras consequências e é por isso que Mises disse que o colapso era inevitável e não que o colapso era certo a não ser que distribuíssem notas a partir de helicópteros ou que criassem instituições supra-nacionais.
quinta-feira, 2 de abril de 2009
Cenário inflacionista
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2 comentários:
Muito bons artigos.
O sr. é de perto de Lisboa?
Sou dos dormitórios que abundam na periferia :)
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