segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Como opera um banco central?

Já aqui descrevi em artigos anteriores como actua um banco central como a FED ou o BCE para "regular" os mercados. Nos EUA, o FOMC (Federal Open Market Committee) actua livremente no mercado de titulos de divida publica, e mais reservadamente no mercado cambial, para ajustar o valor do USD e as taxas de juro às politicas que lhe interessam. Torna-se óbvio que só acredita no mercado livre quem não conhece o mercado, quem acha que este sistema tem alguma coisa a relacionada com o Capitalismo é apenas porque levou uma "ensaboadela" ideológica... nenhum mercado pode ser livre quando o mercado do produto (dolar, euros,etc. - dinheiro em geral) que serve para efectuar pagamentos é controlado por meia duzia de tipos que se reunem à porta fechada.

Fica aqui um documento, recentemente desclassificado, de 1961 emitido pela Reserva Federal Norte Americana. Podem também ler esta versão onde tem os comentários de um dos membros da GATA.

O documento detalha a análise da FED sobre como a FOMC podia intervir no mercado de câmbios e como podia minimizar o conhecimento público das suas operações alterando alguns aspectos da sua contabilidade. Relembro que estávamos em 1961, uma altura em que o sistema monetário internacional era regido pelo acordo de Bretton Woods que colocava o ouro a valer $35 USD, directamente convertíveis pelos bancos centrais de outros países.

Claramente começava a tornar-se difícil assegurar a hegemonia do dolar americano (não esquecer que o sistema de Bretoon Woods colapsou uma década mais tarde) e é o propósito deste memorandum interno arranjar formas de manipular o mercado para que as saídas de ouro visíveis dos cofres americanos não sejam sentidas no mercado cambial.

A história mostra-nos que, como é costume, a intervenção do Estado falhou. A mão de Adam Smith tarda mas não falha.

Ficam algumas pérolas do documento:
The basic purpose of such operations [no mercado cambial] would be to maintain confidence in the dollar.

The Federal Reserve Bank of New York has had a number of accounts abroad [...] The BIS account was opened in 1931 in the sum of $10 million.
Este parágrafo é interessante porque, segundo James Turk, o Congresso tinha impedido o Governo de lidar com o BIS (Bank for International Settlements). Uma demonstração clara portanto de que o Banco Central está acima da lei...

Other accounts included those with Iran, Egypt, and India which were opened in our name in order that the Treasury would not be identified with certain transactions.
... e como tal o Governo utiliza o Banco Central para dar a volta a situações mais "complicadas".

Chegamos então à parte da transparència:
Some thoughts should first be given, however, to the question of immediate publicity if foreign funds are acquired in connection with official debt repayment. In all probability, the paying country as well as the United States will immediately announce the payment. Perhaps, however, no mention would need to be made of the fact that some part or all of such repayments did not take the form of dollars.

At present, foreign exchange holdings are included in “Other Assets,” [...] Generally, on the weekly statement of the New York Reserve Bank, “Other Assets” is a relatively small item ranging between $30 million and $100 million. (On the consolidated statement for the System, the item generally ranges between $125 million and $400 million.) Substantial fluctuations in the item (say, $50 million or more) might lead to rather immediate questioning and close analysis would probably reflect foreign exchange dealings with perhaps embarrassing promptness.

There should be some way to avoid this adverse result. Possibly “Other Assets” might be grouped into a broader category so that the net impact of foreign exchange dealings would not be so readily evident.

With respect to forward operations, disclosure could be avoided if such commitments were carried simply as memorandum accounts and thus not be made available in any published data; before adopting such a method, it would be necessary to consider to what extent a contingent liability should be shown.

Repare-se aqui como o FED ignora completamente Bretton Woods, prontificando-se a imprimir dolares que não podem ser cobertos pelo ouro cotado a $35:
A major advantage to be gained by Federal Reserve operations on its own account in the foreign exchange market arises from the fact that the Federal Reserve Bank can create dollars while the Treasury is restricted to the use of funds held by it.

Odete Santos disse recentemente no congresso do PCP que o Capitalismo estava morto... concordo com a senhora mas aproveito para clarificar que além de morto está enterrado. O funeral foi em 1913 com a criação da Reserva Federal dos EUA.

4 comentários:

CS disse...

Sabe que há mesmo quem ache que a inflação poderia ser a solução para a actual crise: veja o livro anunciado em http://ovalordasideias.blogspot.com/2009/01/livro-sobre-presidncia-de-obama.html, em que de Harvard a Chicago, passando por Princeton há uma crescente percepção que a inflação susteria os défices maciços.

Nuno Branco disse...

É verdade e claro que a inflação é benéfica para quem deve dinheiro (se os 1000 euros que eu devo amanhã valem menos dos que os 1000 euros que eu pedi emprestado hoje fiquei a ganhar) mas obviamente isso tem efeitos negativos para quem emprestou esse dinheiro.

Adicionalmente a inflação prejudica gravemente os que vivem de rendimentos fixos (como os reformados) uma vez que nunca recuperam o seu poder de compra.

Sendo que a crise é originária no excesso de crédito obviamente a inflação ajudaria estas pessoas a sair das suas dividas mas para isso não basta uma inflação moderada.

Esperar que os credores dos estados consumistas aceitem a desvalorização da moeda de uma forma acentuada é ingénuo e esse cenário teria consequências muito graves para o comércio internacional e para o nível de vida do "Ocidente".

CS disse...

Meu caro amigo,

Isso são argumentos de manual para uma situação que já não é de manual. Exploro-a em detalhe no livro, mas deixo aqui uma sinopse dos mecanismos causais:
http://ovalordasideias.blogspot.com/2009/01/e-agora-obama-o-policy-mix-de-krugman.html

Nuno Branco disse...

Como é que a inflação roubar os que poupam é um argumento de manual?

Só pode ser uma solução para a crise porque a maioria não poupou nada e está é interessada em desvalorizar o que tem a pagar de empréstimos (como referi acima).

E continuo a achar que a China não terá interesse nenhum em segurar o USD com os seus dois triliões de divida publica numa condição de inflação acelerada ou hiperinflação (porque é isso que é necessário para salvar os devedores). Há limites para tudo.